quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

O encontro no teatro


Enquanto espera pelo autocarro , acende um cigarro , para ajudar a matar o tempo. Caiem uns inofensivos chuviscos , que se vão adensando , tornando – se mais ameaçadores à medida que o vento , frio e irregular , os vai levando , sem ordem, para cima do seu corpo. Ao seu lado , uma jovem estudante , porventura universitária , de gabardina e com um colorido guarda - chuva , não consegue disfarçar um entediante semblante de quem já ali está há um bom pedaço de tempo , aguardando um antipático bus.
Os seus cabelos , suavemente alourados , esvoaçam sem controlo , coreografando uma espécie de bailado caótico , do género das coreografias de Cage / Cunningham.
É neles que Ricardo fixa a atenção enquanto liberta , levantando a cabeça , umas fumaças do seu cigarro.
Na rua quase deserta , passam uns carros apressados , agressivamente indiferentes às presenças , ali ,daqueles dois corpos desprotegidos , expostos ao frio e a uma chuva que persiste em não ter direcção definida
.

domingo, 25 de fevereiro de 2007

Inês



Parecerá ridículo ou será porventura mesmo ridículo , que nesta era da informação " on - line " e da Internet ainda se escrevam cartas e será definitivamente ridículo se essas cartas forem cartas de Amor. Mas como disse F. Pessoa : " todas as cartas de amor são ridículas... !".
Mas afinal que mal poderá fazer uma simples carta, que num só gesto se amarrota e se atira para o lixo... ? !
Apesar desse risco , não resisto a esta tentação de aqui me sentar e dedilhar estas linhas enquanto penso em ti e te imagino ao pé de mim , enigmática e bela , silenciosa e perturbante , inspiradora de um silêncio apaziguador capaz de me transportar para uma galáxia longínqua.
Imagino - te como te vi pela ultima vez , vestida de preto , com os teus bonitos cabelos pretos , tranquila e misteriosa , caminhando sobre um lago de mel , num entardecer magnífico e extenso.
A Primavera , a sua proximidade , como sabes , transforma a Natureza e transforma – nos apesar dos estranhos tempos que hoje se vivem , há ciclos que se repetem , cheiros e sons que retornam , renovados , emoções que se reacendem , sentimentos que de novo florescem quando pensávamos já terem desaparecido.
Assim é comigo , que á força de uma solidão não convidada , por vezes convidativa , me fui tornando num ser humano menos completo , mais egoísta e fechado , mas apesar disso ainda vulnerável ao pólen do amor , capaz de ser transformado pelos naturais ritmos da natureza.
Inês , de quem quase nada conheço , para lá da perturbante aparência , mas por quem , o meu coração , numa fugaz e efémera noite , foi tocado , atingido pela seta do julgado desaparecido Cúpido.
Que pensarás tu a esta hora , deste escriba que mal conheces , com devaneios de adolescente ?!... Será que vais continuar a ler estas linhas em silêncio ou , rindo , irás comentar com alguém , ao telefone, o despropósito que cometi ?! .... Ou será que, vigorosamente , amarfanharás esta carta e com desdém deita - lá - ás ao lixo ?!...Ou , nada disto em que estou a pensar , acontecerá ?!...

Levanto - me com a lembrança da tua imagem tão presente que quase conseguia trazer - te para o pé de mim e te poderia tocar . Ponho os chinelos , passo na cozinha para me acalentar num pão com fiambre e queijo , bebo uma chávena de leite com café e caminho até á sala onde me sento no sofá de sempre , eleito a poltrona de um rei sem trono.
Está uma magnífica tarde de Fevereiro , dona de um sol resplandecente a que me rendo , como um soldado reconhecendo a vitória do mais poderoso e a quem se submete num instinto de sobrevivência . Acendo um cigarro , estico as pernas , pouso os pés em cima do "puf " , numa atitude habitual e corriqueira e deixo que os pensamentos tomem conta de mim , como se de um náufrago se tratasse. A tua imagem ergue - se entre o fumo do cigarro que expiro , nos céus , entre as nuvens , pairando, linda de morrer com esses magníficos cabelos cor de azeviche, mulher de um ar fatalmente perturbante e de uma aura misteriosa.
Agarro a mão que me estendes , enleio - te de seguida e começamos uma dança sem música , entre os raios de sol , por onde rodopiamos suavemente , numa harmonia espontânea , indizível e sem palavras.

sábado, 24 de fevereiro de 2007

No café


Aproximou - se , um tanto angustiado , do balcão de vidro do café vazio e , com a voz apertada , pediu , duvidoso , um carioca de limão e um folhado misto , que por ali não costumam ser maus , dependendo isso , mais do seu humor do que do humor do pasteleiro , por estranho que possa parecer.
Pegou , ao de leve , no jornal do dia , que folheou sem convicção e foi lendo as ultimas de um País estranho e duvidoso onde sempre viveu mas de onde e sem dar por isso , muitas vezes se tem afastado.
Sente - se um cobarde !
Um homem que não conseguiu decidir e , quando o fez , não agiu em conformidade.
Está só. Sente que esse deserto que têm sido os seus dias avança agora para dentro da sua alma , destruindo lenta mas vigorosamente os restos de esperança que verdejavam ainda no seu coração. Sente - se perdido ou prestes a perder-se . Tacteia , desgovernadamente , pelo espaço que o circunda procurando onde se agarrar , procurando desesperadamente uma ancora , uma corda de salvação.
Além disso , sente como nunca sentiu , a força da morte a invadir-lhe o território que até aqui fora apenas seu e dos seus sonhos , levando - o a pensar em como tudo é tão passageiro e efémero , em como tudo é rápido , vertiginosamente rápido , mais rápido ainda quando não se sabe aproveitar o tempo que nos é concedido.
Olha a colega de trabalho quase como se não a estivesse a ver e isso acontece-lhe ultimamente , amiúdes vezes. Amargura - se em silêncio com o rumo mais recente que as coisas na sua vida tomaram e interroga-se inevitavelmente sobre os porquês . Talvez saiba a resposta . Não quer é neste momento ouvi-la porque isso iria doer profundamente.

O silêncio


O silêncio inundara - lhe o espaço , tal como agora o branco preenche quase por completo esta tela onde , devagar , as palavras vão avançando na vã esperança de o fazer esquecer essa ausência em que de vez em quando mergulha , como um autista.
A verdade é que já não tem o silêncio que ainda há momentos o inspirara e o fizera erguer - se do sofá solitário onde , tentando descansar , se encontrava sentado e o encaminhara até aqui , ao seu computador que , ao espalhar um incessante ruído semelhante ao de uma pequena turbina , eliminou a possibilidade da audição de qualquer silêncio.
Desde que quebrara os óculos , companheiros de há quase cinco anos , que deixara de ser o mesmo , como se esse pequeníssimo acidente tivesse determinado uma inflexão ao rumo normal do seu quotidiano com consequências sentidas ainda no momento presente.
Apaga o cigarro , esmigalhando - o firmemente contra o cinzeiro de barro vidrado , num gesto curto que se esvanece logo depois .Olha em redor da sala , deparando-se de novo com um silêncio espesso e penetrante que lhe toca bem junto da coluna vertebral , deixando - o suspenso num vazio estranho e aparentemente sem saída. Não obstante , procura retirar do ambiente a inspiração suficiente para o fazer teclar as palavras que lhe permitam exprimir o que sente a atravessar a sua alma um tanto desolada em consequência dos actos que ao longo da sua vida foi tomando . O seu corpo parece querer anunciar uma nova etapa da existência , que não conhece , apenas desconfia , que sabe ir acontecer mas que não pode de momento dizer ou adivinhar como realmente irá ser.
A pré anunciação do desaparecimento final sempre foi matéria que o perturbou e , desde cedo , essa ideia o tem acompanhado , tornando - se por vezes quase como a única amiga , por estranho que isso possa parecer , dos momentos difíceis.

Domingo


Numa tarde de Domingo na expectativa do que nunca iria acontecer , permaneceu no entanto sentado , impávido , na poltrona onde habitualmente se senta , deixando que a musica o fosse invadindo , inesperadamente bela e agradável , tão tranquilizadora e calma , capaz de o reconciliar com o mundo , com os outros e especialmente consigo mesmo. Por ali ficou um tempo sem conta ouvindo o som harmonioso que a rádio lhe proporcionava numa espécie de encantamento infantil , embalado pela musica...